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Pelo direito de “SER”

1 de março de 2013 1 comentar Artigo Autores Convidados, Textos, Visibilidade Trans Samie Carvalho

Determinismo da imagem sobre o direito de auto-afirmação.

O que Katie Baratz e Lea T tem em comum com a Edinanci.

Por Samie Carvalho

Hoje pela manha li no Facebook uma reportagem sobre uma mulher chamada Katie Baratz. Após ler os comentários dos leitores, que pra mim são um dos melhores termômetros sociais já criados pela internet, fiquei pensando bastante sobre validação e aceitação dos indivíduos transgêneros.

O caso da Katie, que nem é assim tão incomum, é chamado Síndrome da Insensibilidade Androgênica, ou SIA. Pessoas com essa condição, são cromossomicamente XY, mas devido a um insensibilidade a testosterona, nascem com testículos internos, sem útero, mas com uma entrada vaginal e uma genitália completamente “feminina“. São criadas como meninas, e em todos os casos que eu já vi, se identificam como mulheres. Só vindo a descobrir que são cromossomicamente XY depois de algum exame médico recorrente da falta da menstruação.

Nos comentários da reportagem li coisas do tipo:

“Essa é uma linda história de amor e superação!!!”

“Parabéns à Katie por sua coragem de revelar este problema tão incomum. Deve ter sido uma barra. É bom perceber que ela superou os preconceitos e é uma pessoa tão feliz. Parabéns também à revista por divulgar o assunto e publicar uma matéria tão importante e uma história tão bonita !!”

“Muito bom saber que a Katie teve a coragem para enfrentar esta situação de doença tão incomum, uma guerreira. Deve ter crescido como pessoa, enquanto desenvolvia forças para lutar.Admiro estas mulheres do presente.”

Nesses comentários algumas coisas me chamaram a atenção, entre elas o uso do termo “doença” pra uma condição natural da Katie.

A Katie não é “doente” por ter cromossomos XY! Ela é o que ela é, apenas mais uma variação genética da espécie humana! Dizer que ela é doente por ser XY é o mesmo que dizer que alguém é doente por ter nascido com cabelos crespos, ou alta “demais”.

Isso já nos mostra uma das faces do discurso cisnormativo que tenta justificar a normalidade artificial das identidades cis através da patologização das identidades trans.

Você deve estar se perguntando, “Mas então, Katie é trans?”

Bem, a resposta é: sim e não! Depende do ângulo que você enxerga a situação e da forma que você interpreta conceitos como ser cis, trans, mulher ou homem.

Outra coisa ainda mais gritante pra mim, foi perceber a empatia gratuita das leitoras com a Katie, muito diferente de quando comparamos com comentários feitos em notícias sobre mulheres trans que nascerem com penis, como a Lea T por exemplo.

De coisas como “Vira homem!“, “Traveco nojento” a “Não importa o que ela faça, Deus a fez homem e/ou ela será sempre homem porque os cromossomos dela são XY“, em qualquer notícia que envolva uma personagem transexual, veremos sempre o mesmo discurso de ódio, binarista, cisnormativo, em nome de deus ou da ciência, muitas vezes usando o fato dos cromossomos XY como prova final e irrefutável de que aquele ser humano jamais poderá ser considerado e validado como mulher pela sociedade!

Perceba que em nenhum momento me referi (ou via a reportagem se referir) a Katie como do sexo masculino, ou homem, nem mesmo como transexual, apesar dos cromossomos XY dela.

Entretanto eu me pergunto:

Qual a diferença entre a Katie e as outras mulheres trans que possuem cromossomos XY? Seria a Katie considerada transgênera ou cisgênera? Onde estão os limites entre uma coisa e outra?

Porque a Katie recebe a todo momento essa validação social gratuita como mulher e não vemos o mesmo acontecer com outras mulheres trans, digamos “clássicas”?

Quando foi revelado que ela fez uma cirurgia para remover os testículos, porque não houve nenhum comentário ou “preocupação” com o fato dela poder se arrepender de removê-los?

Porque não houve nenhum questionamento quanto a sexualidade ou identidade de gênero dela?

Ainda vou mais longe, me pergunto se em algum momento ela precisou “provar” que era “mulher de verdade” (afinal ela era XY, nao é mesmo?) através de meses de atendimento psicológico, ou precisou de autorização de alguma junta médica de psicólogos, endocrinologistas e outros “istas” pra ser validada como mulher e ter o direito de remover os testículos dela e  começar o tratamento hormonal com estrogênio?

E outra, ela foi obrigada a mudar a certidão de nascimento dela para “masculino” devido aos cromossomos XY?

E se em uma situação hipotética, Katie sempre tivesse se sentido homem e apenas mantinha as “aparências” como mulher, devido as pressões sociais (assim como qualquer pessoa trans); E se elx, após se descobrir XY, resolvesse fazer tratamento hormonal para tomar testosterona? Teria que passar por todo o processo burocrático como o que acontece com os homens trans? Precisaria acionar juízes para requerir a mudança de nome e sexo na certidão de nascimento?

No fim é facil perceber que o único motivo pelo qual a Katie não sofreu nem 10% de toda desvalidação e preconceito que as mulheres trans sofrem, tem a ver simplesmente com o fato dela ter nascido com uma genitália “feminina“. E é aí o ponto que eu quero destrinchar.

Que no fundo, mesmo no meio médico, que em teoria é mais esclarecido, não importa quem você seja, como você se sinta, como você se apresente ou auto afirme, qual seja sua identidade de gênero, se tem ou deixa de ter útero ou testículos, nem mesmo os cromossomos importam!

No final, o que realmente importa é o quão sua imagem (e sua genitália, a priori) supre as expectativas binaristas, para que você seja aceita na sociedade como ser humano normal e digna de direitos.

Explicando, façamos um paralelo entre a nossa Katie e outras duas mulheres, Lea T e Edinanci Silva (aquela do Judô), a primeira uma mulher transexual e a segunda uma mulher que praticamente não se encaixa em nenhuma das expectativas sociais do que é ser considerada “mulher”, apesar de seus cromossomos XX e de possuir uma genitália feminina. (Alguém me disse que a Edinanci é intersexo, mas mesmo se for o caso, o exemplo continua válido, visto que ela se identifica como mulher)

O típico discurso transfóbico arroz-com-feijão é sempre o mesmo, binarista e cisnormativo, prega que não importa quantas cirurgias façamos, quantos anos de tratamento hormonal façamos, nós, mulheres trans, seremos sempre consideradas “homens“!

A justificativa sempre gravita em torno de três coisas:

1-O fato de termos uma genitália “masculina”;

2-O fato de não termos um útero (e termos testículos);

3-E em ultima instância, o fato de nossos cromossomos serem XY. 

Baseado nesse tripé de fatos, somos desvalidadas em todos os sentidos como mulheres.

Mesmo mulheres transexuais que suprem todas as expectativas sociais e de imagem do que é ser mulher (digamos, as que “passam” super bem), sendo “femininas“, delicadas, curvilíneas, magras, e que tenham feito a Cirurgia de Resignacao Sexual CRS, mesmo essas que são totalmente indistingüíveis de qualquer mulher cis, mesmo essas sofrem com a desvalidação constante dos patrulheiros de gênero alheio, sendo acusadas de “enganar” os pobres homens, simplesmente porque, apesar de tudo, seus cromossomos são XY…

Nesse sentido, estaria Katie também enganando os outros homens? Esses mesmos patrulheiros a jogariam na lata do lixo da desvalidação e gritariam aos quatro cantos de que ela é “homem“?

Não foi o que eu vi em nenhum dos comentarios postados em todas as notícias que li a respeito dela. Tanto em português como em inglês.

Estaria ela, a partir do momento que descobriu que seus cromossomos são XY, percebido que toda sua vida era um mentira, e que a partir de entao dela deveria “aceitar as coisas como são” (afinal deus fez ela assim) e passar a viver como homem?

O que eu quero dizer é que, da mesma forma que todas as mulheres transexuais “clássicas“, Katie sempre se sentiu mulher e foi mulher como qualquer outra mulher XX ou XY, mas diferente das outras mulheres trans ela não foi forçada a viver um gênero que não era o seu desde o nascimento. Ela pode começar sua vida como menina, sendo tratada como uma e sendo respeitada, reconhecida e amada como tal, pura e simplesmente porque teve a “sorte” de nascer sem um pênis!

Porque Katie pode viver uma vida normal, sem qualquer problema de desvalidação por parte das pessoas que a cercam, e as outras mulheres XY não?

Em que Katie é diferente da Lea T e de todas as outras mulheres trans? (Todas são XY, possuem testículos e não possuem úteros.)

O fato da Katie ter uma genitália anatomicamente feminina?

Bom, todo mundo(?) sabe (ou deveria saber) que as genitálias externas masculinas e femininas são essencialmente a mesma coisa, os mesmos tecidos, diferenciados apenas em forma, tamanho e posicionamento. Que na essência, vaginas, clitóris, pênis, bolsas escrotais e lábios vaginais são as mesmas coisas, apenas em formatos diferentes. Até mesmo o útero, considerado algo exclusivamente feminino, se não me engando tem seu paralelo cm a próstata masculina.

Nesse sentido, uma CRS apenas ajustaria a “forma” das estruturas pra um formato mais adequado a identidade da pessoa, que no caso da Katie, apesar dos cromossomos XY, da presença dos testículos e ausência de útero, é FEMININO. E em NENHUM MOMENTO é questionada, nem pela sociedade, nem pelos familiares dela, nem por religiosos, nem mesmo pelos médicos!

O que nos leva a prova cabal de que o que temos aqui é uma lógica grotesca de dois pesos e duas medidas, e que o único critério de definição de gênero que realmente usamos, e validamos, é:

Uma terceira pessoa (um médico) que decide nosso gênero, e registra isso num pedaço de papel, baseando-se pura e simplesmente numa estrutura física completamente irrelevante a nossa identidade (nossa genitália externa), que em nada diz com 100% de certeza qual é nosso verdadeiro gênero. Tudo isso passível de enganos e exceções corroboradas pela própria ciência, mas ignoradas por completo em prol do “bem estar” dos pais e da criança (leia-se, suprir as expectativas sócio-culturais da nossa sociedade machista, binarista e cisnormativa).

Tudo isso em um momento em que somos incapazes de se auto afirmar.

E mesmo depois de atestado o erro, como quando a criança começa a apresentar disforia e comportamentos que não se encaixam no molde do gênero registrado; Mesmo depois que nos tornamos adultos, em teoria, independentes e responsáveis; Como pessoas pertencentes a todos os prismas transexuais/intersexuais, somos tolhidos dos nosso direitos sobre nossos próprios corpos, tanto pela sociedade, pelas instituições médicas, judiciais, religiosas, familiares, etc, de forma totalmente draconiana. E ainda somos patologizadxs como loucos!

Para finalizar, e fechar esse assunto, quero demonstrar como essa lógica dos cromossomos que definem, tem de novo, dois pesos e duas medidas, e que no fim tudo esta ligado as aparências, relacionando a Katie com a Edinanci Silva.

A Edinanci, que não é trans (talvez intersexo), possui cromossomos XX e uma genitália feminina com vagina e útero, sofreu e ainda sofre de preconceito cissexista, tanto pela sociedade como pela mídia, pelo mesmo motivo! Não importa que ela seja cromossomicamente XX, ou que ela tenha útero! No fim, o que importa é aparência!

O que importa é que tanto a Edinanci, como todas as outras mulheres cis que não se encaixam no molde convencionado do que é “ser mulher“, são alvos justificáveis, na visão distorcida deles, a todo tipo de chacota e humilhação. Elas tem sua feminilidade, sexualidade e identidade como mulher desvalidadas a todo tempo.

E se pra elas já é ruim, pras mulheres XY com um penis é infinitamente pior!

No fim, Katie, que nasceu sem útero, com testículos e cromossomos XY, é “mulher” sem precisar de nenhuma justificativa, tudo porque quando ela nasceu, o médico que fez o parto, viu a ausência do pênis e fez o favor de marcar “feminino” na certidão de nascimento dela.

O que é engraçado, porque temos aqui uma folha de papel com um símbolo (a palavra “feminino”) pra representar uma realidade, o fato de Katie ter uma genitália feminina e por isso ser considerada mulher pela sociedade.

Entretanto, para nós, pessoas transgêneras, essa realidade que esse símbolo representa é passível de mudança devido a equívocos das mais diversas naturezas, mas símbolo que a representa (deveria e poderia) mas não é!

Deram um nó na semiótica!

Incoerente, não?

Nem tanto. Numa sociedade em que as pessoas pouco se importam com quem você seja, pouco importa se vc tem útero, testículos, cromossomos XX ou XY, o que importa é o que os OUTROS se sentem no direito de dizer e selar o que você deve ser.

Uma sociedade onde os indivíduos se cobrem de uma autoridade alheia, pra ditar o que os outras são, ignorando por completo o ser como indivíduo autônomo e independente. Sociedade essa em que nos é negado o simples direito de “SER”.

 

Samie Carvalho

Autora de Sasha, A Leoa de Juba

Tags: direitos humanos, LGBT, Samie Carvalho, Sasha, Sasha the Lioness, Transexualidade, Transgeneros

1 comentar

  • clara 17 de março de 2013 em 09:20 - Responder

    mas é preciso ressaltar que a propria lea T diz coisas absurdas sobre sua sexualidade. ela mesma diz que nao deixou de ser homem por causa da cirurgia, que nao é e nunca vai ser 100 por cento mulher e muitas outras bobagens que ela dissemina na midia sobre as mulheres trans.

    claro que devemos lutar contra a desinformacao, a discriminacao e o preconceito, mas uma pessoa como a lea t também nao ajuda muito a esclarecer. ao contrario, ela so reforça estereotipos e estimula a ignoracia e o preconceito ao dizer que trans nao sao mulheres.

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