Tenho acompanhado a discussão em torno da campanha que Thammy Miranda participa dos dias dos pais. Ele não representa a realidade social dos homens trans brasileiros. Se pensarmos em determinantes sociais e marcadores da diferença, ele realmente ocupa um lugar que homens trans não estão. Ele possui vantagens, privilégios e visibilidade. Faz, ou vem tentando fazer, uma representação que não tem um discurso alinhado com o que propõe politicamente o movimento organizado trans e LGBTI+. Se filiou a partidos conservadores que são contra as causas LGBTI+. Mas, ele é um homem trans e o direito que ele tem enquanto indivíduo de ser pai e de ter sua paternidade respeitada e reconhecida, deveria ser garantido a ele e a qualquer outro homem trans que deseja ser pai.
Acho que toda essa problemática também se deu, devido ao Thammy ser uma pessoa pública e conhecida desde muito novo. Por ser filho de artista e ter sua vida exposta pela mídia passa por diversas experiências pessoais, algumas invasivas. As pessoas sabem de forma midiática os processos que ele passou até se entender homem trans. Existem registros desde quando ele dançava com sua mãe, passando pela mudança de sua expressão de gênero, depois quando assumiu que se relacionava com mulheres até tornar público que é homem trans. Talvez se ele não fosse conhecido todo esse incomodo seria menor. Iria ter transfobia de toda forma, mas talvez, não usariam a imagem e a longa vida pública para invalidar sua paternidade e masculinidade trans.
Quero contribuir com essa discussão trazendo um olhar mais específico das demandas transmasculinas, que para mim ficou bastante evidente no quanto ainda temos muito trabalho pela frente. Algo que para muitas pessoas poderia ser apenas mais um comercial se tornou lugar de disputa e debate em torno do que é ser pai na sociedade. E consequentemente o que está ao redor disso.
Acho o debate válido, pois sabemos da ausência paterna muitas vezes vindo de homens cisgêneros que abandonam as mães assim que sabem que elas estão grávidas e da tentativa que a gravidez seja interrompida. As mulheres têm denunciado essas violências.
Pensar que esses tipos de atitudes podem acontecer com um homem trans ainda não é cogitado. Somos nós que teremos que problematizar isso. Até, porque são especificidades diferentes das mulheres cisgêneras. Possui outra dimensão pensando num corpo transmasculino. Não é uma comparação, mas é preciso, explicitar que todo o corpo que engravida pode passar por isso. O que engravida é a possibilidade biológica do corpo e esse corpo pode ser também o de um homem trans. Sua corporeidade possibilita isso. A gestação paterna não invalida a masculinidade do homem trans, mostra que é possível a diversidade de condições e corpos masculinos (PEÇANHA, 2015).
Este não foi o caso de Thammy Miranda. Ele não engravidou e sim sua esposa Andressa Ferreira, que passou por um procedimento de inseminação artificial nos Estados Unidos.
Dito isso, eu quero olhar para o que me chamou atenção de fato em torno dessa discussão toda. Os direitos reprodutivos, neste caso principalmente, e direitos sexuais de pessoas trans. Particularmente de homens trans e pessoas transmasculinas no Brasil. O que está estritamente ligado a paternidade e a masculinidade.
Hoje no Brasil não existe garantia de direitos sexuais e reprodutivos de pessoas trans e travestis de forma efetiva. A saúde de forma geral ainda é pensada de forma binária e cisnormativa. Os protocolos existentes que norteiam questões de saúde trans no Brasil, são marcados pela lógica cisheteronormativa, quase que uma castração química. Não possibilitam pais trans e mães trans biológicos. Ou seja, não existe a possibilidade e o cuidado, por exemplo, de antes de começar reposição hormonal guardar material genético para fertilização ou inseminação no futuro.
Não quero invalidar a política pública que existe, longe disso. Ela é muito relevante, mas ressaltar a importância de ela ser atualizada. O que é um dos desafios que teremos de enfrentar a longo prazo.
A pesquisa “TransUerj – Saúde e cidadania de pessoas trans no contexto do HIV-Aids no Brasil: uma aproximação comparativa Brasil/França”1 que foi coordenada pela professora Anna Paula Uziel (LIDIS/UERJ), e os professores Sérgio Carrara (CLAM/UERJ) e Alain Giami (INSERM/FR),foi desenvolvida por uma grande equipe de pessoas transgêneras e cisgêneras que fizeram parte do comitê assessor, dentre eles eu. Nesta pesquisa, verificou-se, entre outros dados relacionados a população trans e travesti do RJ, que 7,75% dos homens trans entrevistados têm filhos. Este dado ilustra a existência de homens trans que geraram. Em relação a planejar para ser pai no futuro, a pesquisa mostra que 38,8% querem e pensam em se organizar para a paternidade. Esse planejamento pode ser uma gestação paterna ou procedimento de fertilização.
Penso que existe uma lacuna no que diz respeito a direitos sexuais e direitos reprodutivos de homens trans no Brasil. Monteiro (2015), em seu artigo, nos mostra que os homens trans que participaram de sua pesquisa, relataram sofrer preconceito no meio LGBTI+ e também entre os homens trans, sobre terem engravidado. Isso ressalta que existe uma não compreensão das possibilidades que homens trans e transmasculinos tem de ser pai. Este não entendimento perpassa pelo lugar do pai biológico, que pode acontecer, quando homem trans engravida ou quando faz inseminação artificial, que mesmo não engravidando 2vai existir material genético do pai, caracterizando uma paternidade trans. Negar esses procedimentos seria como se não fosse possível acessar métodos que possibilite ser pai de outras formas para além da gestação. Essa lógica é estrutural devido cisnormatividade e a não legitimação das corporeidades trans e da condição de família trans.
No caso do Thammy, ele teve o privilégio de poder fazer inseminação artificial fora do Brasil, o que não é a realidade dos homens trans brasileiros. Esse deveria ser um direito de toda pessoa trans e travesti. Pensar políticas públicas que incluam direitos reprodutivos como inseminação artificial, guardar material genético em bancos de fertilização para uma possível paternidade trans ou maternidade trans no futuro, atendimento humanizado na gestação paterna, acolhimento respeitoso e humanizado no luto transmasculino neonatal e gestacional, alternativas de aborto seguro para homens trans que precisem, são alguns dos direitos reprodutivos que deveriam ser assegurados. Porém, ainda estamos demandando questões primárias devido à vulnerabilidade social que pessoas trans e travestis passam no Brasil.
Essas demandas de direitos reprodutivos podem ser pensadas a partir das construções familiares trans que já existem: homens trans e mulher trans; homens trans e homens trans, homem trans e homem cis. Olhar com cuidado para esse tema é importante, pois, existe um grande abismo no que diz respeito a saúde transmasculina. Consequentemente, direitos sexuais e reprodutivos de homens trans no Brasil. É preciso pensar estratégias para que possamos articular essas demandas para que elas sejam acessíveis para todas as pessoas trans e travestis, e não apenas para as que possuem vantagens e privilégios sociais.
Minha pequena reflexão é neste sentido. Não é apenas sobre um comercial, não é apenas pela representação da paternidade trans de Thammy Miranda, não é apenas pela “família lida como margarina”, mas a meu ver, é sobre toda uma estrutura que impossibilita garantir e efetivar o acesso a direitos sexuais e direitos reprodutivos de homens trans no Brasil.
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Link sobre informações da Pesquisa TransUERJ, que não teve ainda
todos os dados publicados
https://instabio.cc/204159WYvhq
Monteiro, Anne Alencar. Cavalos-marinhos: gestação e masculinidades trans. In: V Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades 10 anos, Salvador, 2017;
PEÇANHA, Leonardo Morjan Britto. Ressignificar e empoderar o corpo: homem trans grávido e os desafios da adequação. In: II Seminário Internacional Desfazendo Gênero, Salvador, 2015.
PEÇANHA, Leonardo Morjan Britto. Breve relato sobre direitos reprodutivos de homens trans no Brasil: campanha do dia dos pais aponta acesso negado. Disponível em: http://transliteracao.com.br/leonardopecanha/2020/08/breve-relato-sobre-direitos-reprodutivos-de-homens-trans-no-brasil/.
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