O esquete Valéria está noiva apresentado no programa da Rede Globo Zorra Total no dia 6 de setembro de 2014 trouxe uma triste, embora previsível, novidade para o “humor” brasileiro: A sátira de um homem trans. O personagem em questão fez parte do quadro já conhecido por apresentar uma caricatura grotesca e humilhante das mulheres trans.
Vimos a tal peça e achamos que ele merecia uma crítica e a seguinte nota pública de repúdio:
Este quadro ofendeu nosso relacionamento, família, sentimentos, afetividades, subjetividades, imagens sociais e gêneros.
É ofensivo porque ele ridiculariza nossas dores, problemas e sofrimentos. Não é uma crítica social e tão pouco trata-se de denúncia. Mas nos mostra como doentes incapazes de uma vida afetiva e social plena e saudável.
Estes estereótipos são usados o tempo inteiro contra nós: Pelo estado quando nos nega direitos civis e liberdades;
E também é este estereótipo que está na mente das pessoas que nos agridem cotidianamente.Peças como esta, na medida em que fixam no imaginário da sociedade o estereótipo mais negativo das pessoas transgêneras, contribuem para aumentar nossa exclusão; E justificam toda sorte de violência social, mental e física que sofremos por conta desses preconceitos.
Os dois textos que seguem são reflexões que, pretendíamos, fossem um só texto mais sintético. Mas como os lugares de fala mostraram-se importantes, decidimos manter as interlocuções originais.
Após ver o vídeo do programa zorra total, fiquei a refletir. O que me fez pensar em começar pela análise de algumas falas do quadro:
Voltando à reflexão, Sou a favor das pessoas ressignificarem seus corpos. Inclusive, tenho dito nos espaços onde vou que o corpo trans é legítimo. Agora, não é porque algo se tornou visível que quer dizer que se tenha que fazer chacota em cima da “diferença” e da “novidade”. Não precisa controlar os corpos, as práticas sexuais, as sexualidades, e todas essas caixinhas que existem. O problema não está na visibilidade e sim do uso que as pessoas fazem dela.
Este programa fez muito mal: Deslegitimou os corpos, as pessoas e as identidades das pessoas. A mídia está aí pra isso mesmo, infelizmente é o trabalho dela.
Cada um vive de maneira diferente e performatiza (não apenas pessoas trans, pessoas cis também) de maneira diferente. Se pessoas como nós não transgredíssemos a todos essas caixinhas talvez um programa como esse nem teria esse tipo de humor, mas nós existimos e somos legítimos com nossos corpos e nossas vivências.
A transfobia também é controle dos corpos, controle de tudo o que podemos ser, das próprias “caixinhas” de sexo e gênero. Isso fica muito claro em relação as pessoas cis: Porque pessoas cis também podem transgredir determinadas normas sem serem julgadas como nós (trans), que somos considerados “radicais”. Radicalidade essa, que é nossas vivências não remeterem às normas de sexo e gênero, o que justifica a necessidade de sermos “controlados” pelos “normais”.
O dia que essas “caixinhas” começarem a ser detonadas toda a “graça” desse quadro e toda a diferença vai perder o sentido.
O problema das ressignificações corporais é justamente o controle do biopoder, da biomedicina nos corpos. Afirmam que só os corpos “biologicamente e fisiologicamente” funcionais são válidos. Entretanto, nós sabemos que outras leituras e (re)construções corporais também são. Só que as pessoas são ensinadas e treinadas para não acreditar nas diferenças.
Eu vi neste quadro todo o tipo de violência da mais cruel contra a mulher cis, trans e também com homem trans em suas subjetividades. Estão fazendo das orientações sexuais destas pessoas algo errado.
E vejo a mídia dizendo que não pode existir um casal trans. Que não pode ter homem de vagina e nem mulher de pênis porque isso é aberração. O que até agora era ridicularizado só nas mulheres trans, agora será feito nos homens. Já estão começando a mostrar como vão cobrar a “normatividade” das masculinidades. É o controle do que é ser masculino.
A visibilidade das transmasculinidades pode fazer com que os homens cis revejam suas próprias performatividades e construções. O aparentemente normativo masculino, pode não ser real. E como será que os homens cis vão dar conta disso?
Esse tipo de programa não faz um humor falso e tão pouco verdadeiro; Apenas não é humor. Humor mesmo é outra coisa completamente diferente das abordagens desse programa. Não precisa inferiorizar, discriminar, agir de maneira violenta para fazer humor.
Uma pessoa que dirige um quadro como esse não atenta e não se importa com as pessoas que retrata. Não percebe que isso pode causar surtos emocionais, depressivos em quem vê: Em que está se descobrindo trans; Em quem já vive nesta condição mas não se aceita; Em quem vive e se aceita como trans, mas está chateado a família, os maridos ou esposas. Nada disso se pensa, apenas é pensado no deboche e na comédia do senso comum.
Talvez uma pessoa que seja humilde tenha achado ruim por ter algum parente trans na família ela entendeu que aquilo foi ofensivo, mas quem não tem? Como fica para as pessoas que não entendem da temática? Fica nisso mesmo. As pessoas achando que é apenas brincadeira ou chacota.
Este programa reforça a invisibilização, o estereótipo, e não a visibilidade. A visibilidade é outra coisa, é o que pessoas trans e os movimentos sociais fazem.
E nós estamos aqui! Essa é a nossa visibilidade, e nós somos protagonistas para mostrar da melhor maneira possível. Quando for necessário mostrar a angústia sim, mas com bom senso sem chacota. Mostrado a realidade, com respeito e dignidade.
Como o Leonardo mostra em sua análise, o quadro não só é transfóbico como também percebe-se uma intencionalidade no modo como o preconceito é colocado. Embora veja responsabilidades individuais, não quero focar esta fala na transfobia dos autores e atores envolvidos. Isso envolveria uma falsa polêmica cheia de justificativas escabrosas por parte de quem defende-se de ser preconceituoso.
Prefiro focar na função social do quadro, que é fazer um determinado público rir. Isso eles fizeram de propósito: Um quadro de “humor” para seu público pretendido. De tal modo que a pergunta importante é “quem está rindo de quem e por que?”
Aí encontraremos o vespeiro do preconceito cheio de vespas e ferroadas. Aí também está a adesão dos envolvidos ao preconceito enquanto conjunto partilhado de significados, imagens e arquétipos sociais. Deste modo, irmano no preconceito tanto quem riu quanto quem fez rir. Impedindo que um grupo fique jogando a culpa no outro, quando ela é, de fato, socialmente partilhada.
De quem se pretende rir?
Primeiro, de uma mulher transexual redesignada dando uma festa para convidados cheios de maldade para com ela. Em seguida de um homem trans bem intencionado e com boa aparência. E finalmente de uma mulher cis desesperada para casar-se com um homem cis.
E o que haveria de engraçado nisso? Por que riríamos deles?
São duas mulheres — bem marcadas pela transgeneridade e cisgeneridade — disputando um noivo. O noivo e o respectivo casamento é uma realização imensa na vida destas mulheres. Elas disputam quem merece ser legitimada por aquele homem. E por fim, quando parece que a mulher trans levaria a melhor, ela se depara com um homem trans, que de acordo com a lógica do quadro, não é capaz de dar a legitimação pretendida. A própria personagem trans descarrega tudo isso sobre o homem trans, terminando o quadro.
É importante notar que as duas mulheres, tanto a cis quanto a trans, se deslegitimam o tempo inteiro. Por sua vez, o homem trans é tratado como impostor justamente por não “servir” para legitimar qualquer uma daquelas mulheres. Tanto faz se esta deslegitimação seja chamada de machismo (num ponto de vista cisgênero) ou machismo inverso (numa visão transgênra). Em ambos os casos o foco está em interditar a transmasculinidade.
Mais triste ainda que o preconceito seja reproduzido por uma mulher trans, mas é assim mesmo que os opressores gostam: Oprimidos que “sabem seu lugar” e repetem as mesmas barbaridades que sofrem. Se o preconceito for internalizado, melhor ainda para eles. É justamente de toda esta destruição de identidades, perpetradas pelas femininas, que estão rindo.
E a pergunta que resta é: Quem riria disso?
As pessoas que concordam com este privilégio do homem cisgênero e heterossexual. Ou seja, todos que se identificam com o tal \emph{homem cisgênero e heterrosexual} estão rindo disso. Ele é quem não aparece no quadro, mas note que toda a tensão dramática da esquete gira em torno dele. As mulheres estão brigando por um homem transgênero, Que depois, eles deixam bem claro que é incapaz de legitimar um casamento “de verdade”. E por que ele não consegue? Por não ser “homem de verdade”.
É o ápice da fantasia machista, como se a potência do homem cisgênero emanasse do desejo das mulheres. E esta é na minha opinião a graça e o prazer do quadro: Mostrar a “falta” que faz um homem cisgênero naquelas relações. Mostrar como o feminino precisa de uma referência masculina autêntica. E assim a visibilidade do homem trans consuma-se para ser deslegitimada.
Pra variar, o homem cis, assim como precisa ser protegido da mulher trans (“falsa”) também precisa ser protegido da transmasculinidade.
A mensagem do quadro é clara: O homem cisgênero e heterossexual não pode ter rivais. Assim que a norma consuma-se. E haja violência para reafirmar esta norma.
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Peçanha, a sua análise do esquete Valéria vai casar está magnífica, de uma sensibilidade interpretativa sem igual. Mas por favor, peço desculpas pela valéria, pois a mesma representa um segmento populacional de mulheres que passaram a vida em extremas dificuldades sociais e morais devido suas performances transexuais, e por assim ser sem qualquer traquejo social ou sensibilidade com as palavras. O programa humorístico em questão não deve ser considerado nosso inimigo, ele somente reproduz o entendimento cultural que a massa tem a nosso respeito. Parabéns mais uma vez pelo seu texto.
Olá querida Ivone! Fico muito feliz em saber que gostou!
Eu entendi o seu ponto de vista e o que quis dizer. Respeito todas as maneiras de expressão de gênero, identidade e vivência das pessoas, acredito que essas características são construções de cada pessoa com suas subjetividades.
Mas, na minha opinião, a personagem Valéria foi construída por pessoas que reproduziram a imagem de senso comum do que é ser uma pessoa trans, objetificando e naturalizando características negativas relacionada as pessoas trans de maneira preconceituosa para fazer chacota e fazer rir de maneira proposital.
Uma pessoa trans real que vive e tem experiências parecidas e até iguais as da Valéria tem todo o meu respeito, mas esse personagem foi criado apenas com o intuito de colocar as pessoas trans como uma “brincadeira”.
Pra mim, um programa que faz humor nesse sentido não deve ser levado a sério, pois não contribui em nada de positivo para a imagem de pessoas trans. Esse tipo de programa faz muito bem o que você mesma disse: “usa o entendimento cultural que a massa tem a nosso respeito”, para fazer chacota e através disso legitimar e estimular a violência. Tudo de maneira muito sutil, para quem é leigo achar tudo muito natural, e se sentir com permissão a para agir com deboche com pessoas como nós.
Um bj enorme Ivone!
Parabéns Leila e Leonardo, textos muito bem elaborados e mensagem clara sobre como nos sentimos diante de situações que usam como camuflagem o humor para introduzir ainda mais na sociedade a ideia de que não somos de carne e osso., dando a eles o falso direito de nos menosprezarem (entre outras coisas).
Eu não assisto o citado programa, faz muito tempo, exatamente por que seus quadros se tornaram ofensivos demais. Infelizmente a mídia se vale do escárnio para aumentar seus índices de audiência e cabe a nós nos manifestarmos em repúdio a tudo que nos atinge drasticamente.
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