A banda Renatinhos lançou seu primeiro vídeo oficial e ao mesmo tempo lançou-se no fosso dos travestifóbicos da arte brasileira. Um movimento ousado. Diria até que é o primeiro “mergulho artístico” do tipo. Na próxima vez deviam tentar uma piscina olímpica cheia de água. Deste mergulho se sai mais limpo pelo menos.
As notícias chegaram até mim dizendo que Tatá Werneck cantou uma música travestifóbica. O que também levou-me primeiro a pensar: “Que feito Tatá!” Todavia, não sou do tipo que critica e condena sem entender o que aconteceu. Porque ou a crítica propõe uma melhora, ou não vale a pena fazê-la. Então, a primeira coisa que descubro é a existência uma banda inteira envolvida. Segundo a revista Época estão juntos faz vinte anos!
Sendo assim, é necessário dar nome a todos os bois, ou melhor, aos renatinhos: Tatá Werneck, Maurício Meirelles, Murilo Couto, Marco Gonçalves e Nil Agra. Werneck teve o azar de ser a vocalista do grupo e atriz em evidência na televisão, de tal modo que os jornalistas da internet estamparam seu nome nas manchetes. Não é assim que se noticia fatos, mas é assim que se constrói um link que receberá muitos cliques e, na lógica do atual jornalismo online, produzirá uma “notícia rentável”. Informar parece ser a última função desse tipo de comunicação.
Não posso deixar de apontar a misoginia contra Tatá Werneck, que foi desproporcionalmente mais exposta que o restante da banda e muito mais assediada e xingada. Se ela merece críticas, não pode ser alvo de ataques que sejam reprodução de misoginia. Tão pouco deve ser ela alvo preferencial. Outros membros também são comediantes da televisão. Dois deles, aliás, são membros do CQC, que atualmente tem veiculado matérias contra travestifobia e pretende-se aliado da causa de travestis e transexuais. Eles merecem ser bem criticados por suas atitudes contraditórias em espaços diferentes. Tenham ceerteza que não se vencerá a travestifobia com misoginia.
A canção travestifóbica em questão chama-se “Travesti de Fogo” e se propõe a proferir um discurso travestifóbico em um texto nonsense. Pelo que entendi, a banda e os fãs gostam muito desta canção, que os acompanha desde 2012 pelo menos: Foi em novembro deste ano que eles a cantaram no Comédia MTV. A estima pela canção é tanta que a escolheram para um primeiro “clipe oficial”, que deve fazer parte da estratégia de lançamento do primeiro disco.
Então, passaram-se quase (e pelo menos) três anos para que a canção fosse mais divulgada e finalmente a sua travestifobia fosse apontada. É impressionante como não houve nenhuma discussão séria a respeito do preconceito contra travestis neste tempo todo, o que permite problematizar a relação da banda e seus fãs com o conteúdo. Fico aqui me perguntando como ninguém nunca foi ao camarim dizer para essa gente “bichas, parem”. É desse tipo de amigo que precisam, não mais aqueles que só servem para serem citados como “certificado” de boas intenções.
E já que estamos falando de boas intenções, parece que a banda está tão convicta das suas que nem apelou para o recurso do “tenho até amigos que são…”. Vejam como pediram “desculpas”:
“A intenção é sempre divertir. E no caso dessa canção, havia também o intuito expor o nosso repúdio ao preconceito e à discriminação para com as travestis. Fizemos a crítica jogando luz num suposto ‘medo – absurdo e sem fundamento – de travestis’, algo que não reflete a nossa opinião, por isso nos sentimos a vontade pra criticar ‘brincando’. Não julgamos ter cometido erro algum, já que a intenção era repudiar uma mazela. Fomos mal interpretados. Fizemos do nosso jeito: com humor. Porém, se a semântica do nossa arte, que tinha o primordial objetivo de atender ao propósito de toda piada, que é ‘fazer rir’, e a nossa crítica a esse preconceito sem sentido acabou por causar desconforto e mal estar, pedimos desculpas. Pedimos desculpas pelo fato de ser a transfobia um crime (embora não tenhamos cometido), além de ser algo abominável. Crescendo sempre. Menos a Tatá. (Estamos falando de estatura, ô!). Roques mil!”
O pedido de desculpas não faz mais sentido que a letra da canção pela qual pedem desculpas. Que raio de pedido de desculpas é este no qual a pessoa não errou? Para que esta falsa humildade? Bem sabemos a que serve: É para melhor acusar quem apontou travestifobia de ignorância, não é?
Não pude deixar de me espantar com a absoluta convicção destas pessoas em sua própria bondade. Pois não há citação de estatísticas de violência e expectativa de vida que maquiem estas noções que norteiam a lógica de construção deste pedido de “desculpas”.
Aqui, alguém pode se perguntar se eu não estou sendo muito dura com eles. Pode ser, mas tenho motivos! Acabaram de dizer que eu não sei interpretar uma letra de canção. Evidente que estou ofendida! E vou explicar porque. Já que resolveram falar em semântica, palavra difícil que enfeita o texto deles, vou aceitar esta escolha de “armas”, resolver dois problemas com um argumento:
A canção Travesti de Fogo é travestifóbica pelo menos motivo que o vídeo Travesti do Porta dos Fundos, escrito pelo Gregório Duvivier. Ambos acreditaram denunciar o “absurdo” do discurso preconceituoso e o resultado foi preconceituoso. Será mesmo que o público não entende mais contexto, ou talvez os criadores não estão entendendo o contexto do preconceito que querem denunciar?
A primeira parte da canção faz afirmações transfóbicas seguidas por um refrão nonsense. A segunda parte é uma paródia da primeira, na qual alguns sujeitos e sentidos são trocados, produzindo uma ideia de confusão mental. O eu lírico afirma seu medo de travestis está, de fato, em uma espécie de estado alterado de consciência no qual não raciocina.
Por sua vez, o vídeo do Porta dos Fundos retrata um homem que fica indignado ao perceber que não levou uma travesti, mas uma mulher cisgênera para o motel. Ele sente-se enganado porque a mulher cisgênera “pareceria travesti”, mas ele mesmo não conseguiu perceber as diferenças que afirma. Percebe-se que a imagem de travesti na cabeça daquele homem não corresponde nem ao que ele vivencia.
A diferença entre as duas peças é que a canção é paradoxal enquanto que o vídeo está baseado em uma contradição. Uma diferença técnica que não é tão importante aqui porque ambas foram usadas com o mesmo fim, que é inserir a travestifobia no campo do absurdo.
Porém, o que todos estes humoristas parecem não perceber a respeito do absurdo é que ele, somente, não é argumento. Em Lógica dizemos que de uma única premissa falsa ou contradição qualquer coisa se conclui. Em termos mais acessíveis, existe muita diferença entre fazer afirmações travestifóbicas entre outros absurdos e afirmar que a travestifobia é absurda:
A situação é análoga a uma festa, na qual todos estão bêbados e dizendo bobagens para se divertir, então alguém resolve contar uma piada travestifóbica e quando alguém aponta o preconceito, o preconceituoso defende-se dizendo que todos estavam falando bobagens e ele disse aquilo como bobagem, para que rissem do absurdo que é e não do conteúdo da fala. A pessoa é preconceituosa porque, independente da intenção real, achar que o preconceito que outros sofrem cabe naquele contexto é terrível, reduzindo a vivência de discriminação a uma amenidade divertida. Sendo assim, por que neste caso a gafe e o preconceito são evidentes e nas duas peças citadas há uma “falha de interpretação” de quem aponta o preconceito?
Também acho que os artistas confundiram sutileza com ambiguidade: Na canção um ouvinte pode tanto entender o medo de travestis como absurdo, como também pode entender como absurda a travestilidade. No vídeo, um espectador pode rir da contradição do personagem masculino, ou pode rir do modo como a mulher cisgênera está sendo tratada de “um modo errado”. Ou seja, pode-se rir do preconceito ou da travestilidade. E ficar em cima deste muro de ambiguidade já é preconceito para quem luta para sobreviver no lado dos discriminados.
O preconceito é bem evidente para mim assim como foi evidente para quem tem familiaridade com a realidade da travestifobia. O que ainda me espanta são humoristas renomados cometendo erros crassos de leitura das próprias mensagens e suas possíveis interpretações. Ou será que eles acreditam que existe forma de denunciar um preconceito sem ofender nenhum preconceituoso? É como dizemos em Lógica: De uma única premissa falsa ou contradição qualquer coisa se conclui.
Portanto:
Bichas, parem! E melhorem, tanto em suas boas intenções quanto em sua semiótica.
Os links deste artigo foram verificados em 20/09/15
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