Embora cause esta impressão em algumas pessoas, eu nunca escrevi um texto acadêmico sobre transgeneridade. Também tenho estudado o gênero e trans-gênero informalmente, para empoderar meu ativismo. Todavia, meu discurso vai pela manifestação de uma vivência entre iguais. É um discurso de convívio.
Buscando nesta vivência, percebi que o discurso acadêmico seria uma cela acolchoada e uma camisa de força para este pensar nascente, híbrido de tudo o que vivi, inclusive na academia, é verdade; E ainda que seja assim, é um pensar que prefiro cultivar livre de obrigações discursivas estabelecidas.
Vez ou outra sou obrigada a falar da academia. Nestes momentos a Filósofa emerge. Todavia, quem surge é rebelde e anárquica. Feyerabendiana para os entendidos. Talvez até um pouco mais radical, pois para dar voz à racionalidades não científicas, para valer-me das experiências das pessoas trans nas ruas, é necessário calar partes exatas da cientificidade. Quando faço disso método, tenho certeza que saí do campo da ciência. Produzo outro tipo de saber, um que a acadêmica em mim sabe que não é acadêmico.
Não tive problemas com isso até hoje, quando me vi necessitada de refutar uma crítica acadêmica ao termo cisgênero. Eu tenho uma história pessoal na academia, mas não sou ninguém nela. Não do ponto de vista dos discursos acadêmicos de gênero. E em outras áreas acadêmicas também, porque esta história ainda não está contada em meu nome.
O cálculo do meu peso é nulo pela Física das citações e publicações em torno das quais gravitam os méritos acadêmicos. Então minhas críticas são como os neutrinos: Podem atravessar tudo e, portanto, interagem com quase nada. E assim como estas sutilíssimas partículas, ainda que se reconheça a existência do meu pensamento, é, na prática, como se ele não existisse nesta realidade.
Como ninguém responde a alguém? O que faz valer esta audácia? Pois basta que alguém pronuncie-se enquanto tal para silenciar a voz de ninguém. Contudo, não posso resistir ao ímpeto de responder justamente porque sou ninguém. E fazendo isso, digo para todos aqueles que, como eu, são ninguém, para não se calarem.
Esta mensagem de rebeldia eu passo através do sarcasmo contra a autoridade acadêmica. Não sou irracionalista, nem chego perto disso, mas o sarcasmo contra a autoridade dos doutos é como eu digo para os jovens não abandonarem seus pensamentos porque algum estudioso disse que estão errados. Estes estudiosos que vêm falar de pessoas trans não sabem o mal que fazem. Suas teorias não são apenas teorias para quem apenas aprendeu a ser corrigido na escola.
Então eu uso o sarcasmo para que as pessoas trans não deixem de falar de suas vivências, criar novas palavras e ressignificar existentes. Isto tem um valor sutil, e ainda que os discursos válidos cientificamente prevaleçam, Há muito o que se trabalhar para além dos significados válidos.
Há muito que se conhecer e talvez Feyerabend tivesse razão: Não existem um método, um conhecimento e uma racionalidade universais. E ainda que — por incapacidade de propor um alternativa — reconheça que o que se produz na academia seja ciência, faz-se urgente que a ciência deixe de ter esta função de calar saberes e vivências. Isto apenas serve para anulá-los politicamente.
Nossa, que texto incrível Leila! <3 gratidão…