“Vamos cortar sua pica” — pichadora de banheiros públicos transfóbica anônima
Uma transfeminista e uma transfóbica cruzaram seus caminhos na saída de um banheiro feminino de uma universidade pública paulista da segunda maior região metropolitana do país. As duas entreolharam-se e o ar ficou eletrizado. Os transeuntes perceberam e pararam para observar as duas que se encaravam.
Nada mais importava. Dali em diante algo sairia ferido: Talvez uma dignidade, talvez uma teoria, provavelmente ambas.
Sem tirar os olhos dos olhos da outra as duas andavam descrevendo um círculo no chão
até que a transfóbica parou e disse:
— Não queremos gente como você em nossos banheiros!
— Não? Por que? — Retrucou a transfeminista.
— Não queremos estupradores em nossos banheiros.
— Certo, mas o que mulheres trans têm a ver com isso?
Um pequeno silêncio até a transfóbica explodir em violência:
— Seu piroco! Vamos cortar sua pica.
— Tudo bem, mas picas não estupram, só estupradores estupram.
Pensei que queria banheiros livres de estupradores.
A transfóbica calou-se com os olhos marejados de ódio. A transfeminista não queria magoá-la, mas também não queria magoar-se. Uma discussão mais longa só pioraria tudo. Agora era conseguir sair dali quieta.
Se todos os encontros não fossem assim, poderia convidá-la para uma conversa civilizada. Quem sabe chegariam a um acordo se entre elas juntassem cascos de cerveja ao invés de casos de discriminação. Não era hora de pensar nisso, pois a transfeminista já notava outras transfóbicas ao redor.
Como ela gostaria que houvesse outra pessoa trans por lá para ajudá-la com a fuga. Mas outra pessoa trans? A universidade tem 18 mil estudantes na graduação 16 mil na pós-graduação e só 6 estudantes são trans. Poucas chances de um encontro fortuito acontecer, até porque sorte não é o forte das pessoas trans.
Mas a transfeminista tinha um amigo que ficou muito empolgado com o seu argumento e não se conteve:
— Muito bom! “Picas não estupram, só estupradores estupram.” É igual ao argumento a favor da liberação do porte de armas.
A transfeminista não teve tempo nem de olhar para o amigo. Que sua espinha arrepiou ao ver os olhos das transfóbicas brilhando novamente. Ela se permitiu um suspiro e disse só para si “tinha que ser um homem cis hétero”. E sabia que não tinha mais tempo para desabafos. Pediu as bençãos de Berenice, Laverne e Indianara e num instante lhe veio a inspiração. Agora ela precisava tomar a iniciativa. Carregou a boca com seu melhor antropologiquês e metralhou:
— As formas são iguais, mas discordo que as premissas por trás de cada afirmação permitam uma equivalência moral e política entre elas. O problema de se equivaler as duas afirmações é estabelecer uma correlação, ainda que metafórica, entre o pênis e uma arma…
Então uma transfóbica a interrompeu:
— Mas porque não? — Perguntou a transfóbica, empogada.
A transfeminista continuou por cima da pergunta da transfóbica que sentia-se segura para já começar a disparar na direção dela. Ela estava apavorada com a possibilidade de começarem a alvejá-la com sua transfobia. Sua munição dialética estava longe de acabar, então continou a metralhar argumentos:
— Porque as ferramentas do mestre não vão demolir a casa do mestre, não é? Não queremos continuar com uma das mais antigas mentiras usadas contra as mulheres e tantas minorias! Oras! Se vamos tomar por potenciais estupradores todas as pessoas com pênis, já que o pênis é o instrumento físico da violência, como vamos poder desconstruir por completo a idéia que o corpo da mulher é tentação pecaminosa para o homem?
— Não são a mesma coisa… — emendava a transfóbica que não pede terminar a frase porque a transfeminista gritou:
— São sim! Só muda o contexto histórico cultural! São naturalizações moralizantes dos corpos das pessoas. Só que num caso naturaliza-se o desejo do homem pelo corpo feminino e no outro naturaliza-se o desejo de estupro em corpos com pênis. Em ambos os casos nega-se autonomia a alguém baseando-se no fenótipo, só muda o alvo. — E continuou:
— Como podemos atribuir questões da autonomia de qualquer ser humano à seu fenótipo? Isto é procurar argumentos para desumanizar! Foi usado pelos sacerdotes desde sempre para reduzir a mulher à uma posse do homem! Foi usado para justificar a escravidão! Foi usado por criminólogos para justificar a violência policial contra minorias! Foi usado pelos antropólogos do século XIX e XX para justificar o neocolonialismo e o eurocentrismo! Aparece na obra do Euclides da Cunha para explicar o massacre xenófobo de Canudos!
— Imputar a culpa a fenótipos tem sido usado por sexistas, xenófobos, racistas, higienistas sociais e todo tipo de opressor para justificar atrocidades políticas contra grupos estigmatizados e marginalizados! Chega de desumanização! Chega! Chega. Basta.
Enquanto falava cada vez mais baixo, a transfeminista dava passos para trás. Percebeu que as pessoas se entreolhavam. Ela virou-se e saiu andando muito rápido dali. Ainda ouviu algumas mulheres falando alto que “piroco é tudo igual, todos estupradores”. Sabia que não entenderiam nada, mas como não lutar para escapar quando acuada? Na verdade a única coisa que ela sabe é debater, mas tem medo de apanhar, tem medo de reagir. Tem medo, lá no fundo, que tudo termine com todos contra ela.
Suas pernas tremiam enquanto andava. Também sentia uma imensa solidão. Caminhou com esses pensamentos até ver-se no bosque do departamento de economia. Então ela tirou a mochila, deixou-a cair no chão e logo depois ela caiu sentada ao lado de um pinheiro.
Naquela segurança triste do isolamento, ela chorou seus conhecimentos inúteis. Não era fácil ainda acreditar na razão. Justamente porque seus argumentos eram fortes, mas não a defendiam daquela violência toda, que a encontrava quase sempre sozinha.
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