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Ensaio de Epistemologia Transgênera

7 de novembro de 2014 0 comentários Artigo Textos Leila Dumaresq

Este texto foi escrito como preparação para minha fala na Transemana UFRJ que ocorreu entre os dias 3 e 7 de Novembro no Rio de Janeiro. Sou muito grata pelo convite e oportunidade oferecida.

Boa noite.

Sou Leila Dumaresq, bacharel em Filosofia formada pela Unicamp e estou aqui porque sou mulher transgênera. Não estou aqui como especialista, mas como ativista. Portanto, meu lugar de fala é o da vivência e do convívio crítico da minha condição.

Eu carrego no corpo e no comportamento minha crítica às nossas convenções sociais e seus limites. O que me torna uma espécie de Cínica. Escola filosófica muito antiga, da época dos gregos e romanos. Eles criticavam duramente os costumes e tradições como virtudes sociais.

E por terem um comportamento dito anti-social eram chamados de “cães”. Isso mesmo, cínico quer dizer cão em Latim. De tal modo que posso me considerar uma filósofa cachorra. Então não estranhem se lá pelas tantas acharem que estou fazendo alguma cachorrada.

Vou misturar o que aprendi na faculdade e nas ruas, mas vou priorizar as necessidades que se impõe quando penso a feminilidade transgênera viva em mim. Até o final desta fala, creio que isto ficará evidente.

Nesta semana vocês terão a oportunidade de ouvir muitas pessoas como eu. E embora algumas pessoas não sintam-se confortáveis com o nome, ainda nomearei nosso grupo de transgêneros. Falaremos de nossa condição a vocês na esperança de nos entendermos. É o que temos feito desde que começamos a dialogar, ou melhor, que vocês começaram as nos ouvir com menos restrições.

E já que estamos conversando na abertura do evento, optei por uma fala de sensibilização. Então preciso que vocês pensem comigo. Quando eu lhes fizer as perguntas que preparei, pensem na sua resposta, sintam a sua resposta, comprometam-se. Enfim, preciso que não sejam ouvintes passivos.

Então vamos à primeira pergunta:

Eu sou mulher?

Sim? Não? Só eu que sei? Tem alguém aí fazendo a cartesiana que eu sei “penso, logo sou”. Há também os estatísticos “alguns dizem que sim, outros que não”. Os debatedores dizem “sim, mas é polêmico”.

Não ajuda muito, mas nos leva à próxima pergunta:

Porque a resposta para mim não é somente o “sim”?

Alguns me dirão que não há mulher categórica, mas apesar de concordar com esta afirmação, gostaria de insistir na pergunta, reformulando-a:

Porque existem mulheres para as quais o “sim” seria uma resposta unânime em todos os ambientes sociais?

Elas existem, estão em todo lugar e aqui, são as designadas desde nasceram e preservam esta designação inconteste por toda a vida. E toda esta problematização nos leva a uma outra pergunta melhor:

Porque existe esta diferença? Ou melhor, porque é tão difícil transgredir a designação de gênero?

Não estou falando das normas, que são facílimas de quebrar. A ponto de ninguém sobre a Terra e também nas estações espaciais poder dizer que é homem ou mulher pleno. Mas é justamente aí, nesta vagueza safada de normas que não funcionam, que encontramos a força da designação de gênero. É necessário romper com a designação mais do que com as normas. Só então o rompimento das normas se torna importante: Quando ele é reincidente e insistente, a sociedade desconfia, e depois tem certeza que há um problema daquela pessoa com sua designação de gênero.

E é porque as normas são vagas e todos as quebram o tempo todo que ninguém consegue romper totalmente com a maldita designação imposta ao nascer. E é por este mecanismo sem vergonha de retórica que se consegue “colar” o gênero e o sexo ao corpo.

Agora chegamos a algum lugar: Quer dizer que eu não sou simplesmente mulher como tantas
— porque as normas de gênero são vagas, imprecisas e indefinidas — a ponto de nenhuma delas e tão pouco todas juntas servirem para inteligir minha feminilidade.

E vejam que absurdo: Quer dizer que tudo o que eu penso, sinto, vivo e faço diretamente não serve para me designar. Por isso estou insistindo que as normas de gênero são inúteis, não no geral, em muitos casos elas são relevantes. Todavia, notem que eu posso segui-las ou não e isso não servirá de nada para me justificar. Elas não têm autoridade para me justificar nem a ninguém.

E onde estaria a autoridade que define o gênero das pessoas?
Encontramos esta autoridade em modelos científicos — como cromossomos, anatomia e fisiologia — eles sim são têm poder de definir quem sou para a sociedade.

Porque temos que hierarquizar o biológico acima da vivência?

Porque este privilégio que nem a Física tem? Pois não existe conflito entre dizermos que o Sol nasce e se põe no horizonte e pensarmos que a Terra gira em torno do Sol. A nossa experiência direta de uma Terra “parada” e firme apoiando nossos pés
não contradiz a consciência que viajamos pelo espaço à velocidade inacreditável num lindo e complexo movimento espiral.

Então porque os fenômenos biológicos deveriam contradizer o que eu estou fazendo socialmente? Claro que não estou me referindo aos bons conselhos de vida saudável que deveríamos seguir. Tão pouco eu deixaria de seguir recomendações médicas sobre minha saúde. Os conhecimentos biomédicos servem para promover a saúde e o bem estar diante dos desafios que a sociedade impõe.

Todavia, estamos falando da relação entre o gênero como socialização e cidadania e a designação de sexo imposta. É neste ponto que aparece o poder biomédico como imposição. Porque não podemos aceitar o além-da-vivência-da-biomedicina como aceitamos o saber da Física?

Pois não nos consterna saber que restam em nossos corpos adultos quase nenhum átomo da criança que fomos. Somos 99,99 % outra matéria. E ninguém aqui vai perder o sono porque sua identidade contínua — como a experiência da memória diz — não tem correspondente material de acordo com a ciência. De fato, nós lidamos muito bem com as dissonâncias entre nossos modelos científicos e nossa experiência cotidiana. De tal modo que é possível pensar tanto sexo quanto gênero sem as assimetrias geradas pelo poder biomédico.

Todavia, tais assimetrias existem, assim como o poder biomédico faz-se valer em nossa sociedade. E agora que compliquei o suficiente a singela pergunta inicial, posso prosseguir:

Como eu sou mulher? Como consigo vivenciar a feminilidade e não sê-la?

Eu não fui designada mulher ao nascer. Então eu tive que romper a continuidade do meu desígnio. Fiz isso quebrando normas, é verdade. Mas como já mostrei, se por um lado, as normas jamais servirão para me validar. Por outro lado, qualquer comportamento pode servir de justificativa para negar-me, pois sou eu quem está “atacando” o sistema biomédico. O ônus da prova é todo meu, mas minha vivência e comportamento não testemunham por mim. É um jogo injusto, mas é este que jogamos com o estado por nossa cidadania.

Vejam então que a diferença entre aderir ao desígnio do poder biomédico para nossos corpos ou não é a diferença entre a inteligibilidade ou não.

Sim, eu sou ininteligível enquanto mulher. Este é o preço que paguei quando decidi expressar o que sentia na vivência. E se sou ininteligível, logo sou vulnerável ao interdito, justificado pelos mecanismos que já descrevi.

É assim pessoas transgêneras precisam de tutela do estado e da medicina. Como nós somos ininteligíveis, nosso comportamento e testemunho de nada valem. Por este motivo, quando muitos dizem “responsabilidade” eu prefiro dizer “inteligibilidade”.

Quando pensamos na inteligibilidade, vemos como o sistema não resolve os problemas das pessoas transgêneras: Ainda que autorizem cirurgias e tratamentos hormonais que necessitamos; que retifiquem em nossos documentos o nome e o sexo; Jamais nos devolverão a inteligibilidade. E o pior, a necessidade de tutela em cada um destes passos nada mais é que a afirmação da nossa não inteligibilidade. Isto é o mesmo que negar e interditar nossa parrésia; de falar abertamente sobre nós. Da ousadia de negar um desígnio pétreo, nos punem interditando nossa afirmação que originou todo o processo.

Então eu digo que enquanto nossa subjetividade significar nada, tudo o que fizerem conosco justifica-se. Porque se somos ininteligíveis, então nossas palavras são vazias. Consequentemente, a validade de nossa vivência humana tem um valor subumano, mas próxima com a dos animais, seres capazes de sentir dor e angústia, de tal modo que a lei até proíbe alguns tipos de crueldade conosco.

Também por isso me apresentei como mulher transgênera: Digo que sou mulher. Transgênera é mais um marcador de lugar de fala, um termo político. Eu poderia usar qualquer outro termo do espectro trans que não agredisse minha feminilidade. Até termos que indicassem terceiro gênero.

Todavia, “mulher” me serve bem, fala muito sobre mim e as relações que estabeleço com as pessoas. Ser mulher é parrésia no meu caso, assim como todos os outros termos são a parrésia de cada pessoa trans. Neste sentido a autoidentificação trans é muito importante: O que para cisgêneros é constatação pela lógica biomédica para nós é parrésia. Testemunhar quem somos com nossas palavras é um ato fundamental de resistência. E poucas palavras não servirão para tantas formas verdadeiras de ser.

E ainda há mais que se tirar daquela pergunta inicial que parecia tão ingênua. Queria explicitar algo muito importante: O cissexismo como fato social.

Percebem agora quanta coisa existe entre cada um de vocês, cisgêneros, e eu quando conversamos? Pois até quando vocês estão dispostos a concordar comigo pelos melhores motivos, a não inteligibilidade do meu gênero torna seus motivos mais benevolência e menos respeito. Pois estou chamando de benevolência o respeito individual, que tem muito valor. Por sua vez, chamo respeito aquele que emana da sociedade para os indivíduos. É só este último que nos protege dos mais diversos abusos e assédios morais. É ele que precisa ser construído através de políticas públicas e educação universal. Por isso uso duas palavras diferentes, pois é normal que confundamos respeito com benevolência.

Pois se há fato social ele é independente dos indivíduos. Ele transcende os discursos e, principalmente, as decisões pessoais. Podemos chamá-lo de ideologia ou cultura. Então creio poder dizer que o coletivo de pessoas transgêneras é uma contracultura própria. Temos nossos códigos, falas, palavras, ressignificações, fórmulas, formas e sentidos próprios. Como toda contracultura contemporânea, vemos diversos aparatos ideológicos — e o mais visível é a mídia — tentando assimilar esta contracultura que já não podem mais marginalizar. E este é nosso jogo social:

Vivemos no fio da navalha entre a assimilação e a resistência necessárias à sobrevivência. Não se é marginal sem fazer alguns pactos com o diabo nem comer migalhas. Nem que seja dizer tudo o que o psiquiatra quer ouvir só para conseguir um laudo.

Neste jogo entra também a academia como aparato. Todo texto acadêmico é um jogo social imenso e complexo. Basta olhar as biografias para perceber a imensa intertextualidade que marca os textos contemporâneos. Os textos acadêmicos publicados em periódicos passam também pelo sistema de revisão de pares. Que é tanto um filtro de qualidade, mas também de normatização das falas aceitas.

Assim percebe-se porque as pessoas transgêneras só conseguem participar dos textos acadêmicos como objeto de estudo etnográfico, demanda, problema ou estatística. Na geografia bem marcada do texto acadêmico, transgêneros são figuras fáceis nas introduções e descrições de problemas. Estamos sempre nos capítulos iniciais das teses.

Quando chegamos aos capítulos de método, análise e conclusões, percebemos que as falas transgêneras rareiam, pois é pesado o ônus do acadêmico que aposta em fórmulas totalmente novas. Ele precisa publicar para justificar seu salário; e só publicará se utilizar em grande parte métodos de análise e síntese consagrados. No final, o resultado não poderia ser outro: O que temos ainda é a vivência transgênera restrita a um modo de pensar e discursar majoritariamente cisgênero.

Creio que até autores transgêneros, se quiserem ser publicados, têm que adequar-se academicamente. Também existem poucas vozes transgêneras se comparadas com as cisgêneras e o peso da intertextualidade e da revisão de pares faz-se valer a quem tenta dar cientificidade à própria fala.

E assim termino minha fala cumprindo a promessa — a que pareceu brincadeira — de fazer uma cachorrada aqui. Fui cínica e coloquei nossas convenções sociais contra a parede. Sempre podemos ver o lado bom dos nossos usos, como no caso do controle acadêmico sobre textos científicos.

Mas nossos fazeres sociais excluem e distorcem vivências. Este é o limite e a crítica do contratualismo que eu resgatei através do Cinismo. Se aceitamos os fazeres sociais como são, por preguiça ou medo de mudá-los, estamos a naturalizar as exclusões e distorções.

Portanto, não há, por hora, como eu conciliar rigor científico e as vivências cotidianas da transgeneridade. E aqui estou eu, usando ferramentas acadêmicas, mas violando o pacto de falar à partir de outros acadêmicos. Escolhi falar à partir do Leonardo, da Idianara, da Bia, da Mandy e da Hailey, da Viviane e tantos outros transgêneros. Há vários acadêmicos nesta insuficiente lista, mas antes de serem acadêmicos, são pessoas que vivem transgeneridades como eu.

Newton disse que ele enxergou longe porque subiu no ombro de gigantes, referindo-se aos cientistas que vieram antes dele. Pois eu, Leila, estou vendo outras paisagens porque fui içada por fadas transgêneras. Como posso garantir minha cientificidade assim? Não posso. Mas posso especular bem a respeito do que estou vendo e
rezar para que isto empodere as vozes trans que falarão depois de mim.

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