Geia Borghi foi brutalmente assassinada. Era artista e auxiliar de enfermagem. (Há links no final desta nota para mais informações). Não havia motivo para tanta violência. Tão brutal o crime que ganhou destaque no noticiário policial, mas a imprensa não reconheceu a vítima, por respeito que fosse, como ela viveu.
Caberia aqui alguma reflexão como as que tenho escrito ou proferido quando aconteceram os assassinatos de Camile, Bianca e tantas outras na Região Metropolitana de Campinas e pelo Brasil. Contudo, a reflexão como as outras não veio porque hoje minha indignação já não é mais a mesma.
Não por falta de vontade ou motivação, mas porque minha indignação já amadureceu e sabe guardar minhas energias para uma vigília mais longa. Aprendi a manter-me indignada, algo que envolveu um duro e consciente desaprendizado:
Tive que desaprender a lidar com a indignação quando percebi que nos ensinaram todos a descartá-la o mais rápido possível, de tal modo que passado tempo suficiente, daqueles brados de lutar até o fim por justiça resta apenas uma nota de repúdio instantânea para eventualidades da memória. E é assim que somos:
“Busque sucesso”; “viva sua vida”; “não viva em função de tristezas”; “não se amargure por coisas que não aconteceram com você”; “estes problemas não são seus”. São os mantras e carneirinhos que contamos quando não conseguimos voltar ao bom sonho do final feliz para todos que se esforçarem.
Quem insiste na indignação, quem acorda para o fato que nossa sociedade é uma máquina de reproduzir iniquidade e violência; que temos sido brutalizados não pela loucura de alguns, mas pela insensibilidade de todos; quem desperta para o pesadelo é convidado desesperadamente pelos que dormem a voltar ao sonho. Os recursos são vastos: de psicoterapia, passando por psicotrópicos e terminando tem todas as vertentes teológicas de sucesso e conformismo.
Fez parte do meu desaprendizado entender que viver em paz é também um privilégio só de alguns. O resto das pessoas só conseguem construir algum sentimento de estabilidade através de pensamentos supersticiosos ou da consciência “de como o mundo funciona”, que tem a versão mais alienada, que revolta-se momentaneamente; ou assumir a forma de ódio fascista:
Parece lógico ser uma “pessoa de bem”, que merece o privilégio de ser ser considerada gente, de ter segurança e buscar sucesso e felicidade. Todos querem ser os eleitos para uma vida segura. Infelizmente isso só existe para quem pode pagar um exército permanente de seguranças e só andar em carros blindados ou para quem aderir à algum tipo de fanatismo ideológico, tornando-se uma “pessoa de bem”.
Por isso todos os que fomentam o fanatismo atiçam o medo social; e todos estes discursos são sempre dos “homens de bem” contra “aqueles degenerados”. Os “bons” merecem segurança e os “outros”, punição nas ruas ou nas prisões. Uma dicotomia chula, mas que tem funcionado muito bem ao longo da história. Se falta familiaridade e contato com o discurso de ódio do qual estou falando, basta procurar pelas notícias dos grandes portais e ler os comentários. Não faltará barbárie fanática, seja ela religiosa, ideológica ou ambas.
É por isso que mantenho minha indignação e vou fazendo constantemente meus apelos pelo mundo. Alguns me encontram exasperada, outros revoltada ou até cansada; Mas, apesar das críticas que recebo dos felizes, tenho aprendido a apreciar meu trabalho; um dos trabalhos filosóficos mais gratificantes e perigosos: Pensar, agir e sentir diferente. Geralmente envolve muito desaprendizado. O que é arriscado, pois é comum nos encontrarmos sem chão no processo, mas não quero ser curada da minha indignação permanente como já me propuseram. Felicidade na injustiça só tem criado monstros morais medonhos, incapazes de enxergar que pelo seu paraíso de segurança e conforto correm rios de sangue inocente.
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