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Em nome de quê?

3 de julho de 2014 2 comentários Artigo Uncategorized Leila Dumaresq

Neste domingo, durante a reunião do grupo de apoio às pessoas transgêneras de Campinas eu, a Bia e a Amara explicamos por que o termo “cisgênero” é melhor que o termo “biológico” para nós, pessoas trans. Eu estava satisfeita com o resultado político da discussão e resignada das consequências, mas alguns desdobramentos posteriores motivaram este texto. Primeiro, uma contextualização faz-se necessária:

A psicóloga do Centro de Referência LGBT de Campinas, Bárbara Meneses, é uma ótima profissional. Como ex-paciente e amiga de pacientes dela, digo que ela é boa. Apesar de nossa terapia não ter dado certo, ela segurou várias barras minhas no começo da transição e foi fundamental para que minha família me aceitasse mais rápido. Além disso, ela é uma funcionária pública diligente e honesta. Esta é a Bárbara que eu conheço. Apesar de tudo isso, de um ano para cá, desde que vi a Bárbara tomar contato com o termo “cisgênero”, a atitude dela diante desta palavra tem me incomodado.

Ela afirma que o termo certo para designar pessoas que não são transgêneras é “homem/mulher biológico”. Diz que esta é a resolução das ciências psi, pois elas já rejeitaram o termo “cisgênero” uma vez, em resolução de conselho. Argumenta que a diferença essencial entre a pessoa trans e a não trans é apenas biológica e, sendo essa a única distinção, não existe preconceito nisso (pois preconceito seria só dizer que as pessoas não trans são normais). Quando dizemos que isso é hierarquizante ela replica que toda definição é hierarquizante.

Não acato tais explicações nem vejo seus motivos para resistir tão bravamente ao termo “cisgênero”. E fosse essa apenas a opinião dela, nada me incomodaria. Porém, há implicações políticas nisso:

Já a vi discordando diversas vezes quando (nós, transgêneros) estamos explicando nossa demanda do termo “cisgênero”. Ela contesta diretamente pessoas transgêneras que sentem-se desnaturalizadas e desumanizadas pelo termo “biológico”. E ela faz isso enquanto psicóloga e sexóloga especialista com dez anos de experiência no atendimento de pessoas transgêneras. Num argumento de autoridade que pouca gente ousa questionar.

A Bárbara repetiu esses argumentos e comportamentos diversas vezes durante as reuniões de pessoas transgêneras e em suas palestras por Campinas e Região. De tal modo que considero este posicionamento dela público e notório, não vendo problema em expô-lo aqui. Várias pessoas que estiveram comigo durante reuniões do grupo poderão confirmar que minha descrição aqui corresponde razoavelmente aos fatos.

Para que não haja confusão, separei o meu relato da posição da Bárbara diz e minha opinião sobre o tema. Agora eu começarei a dar minha própria posição sobre a cisgeneridade:

A palavra “cisgênero” ganhou força na comunidade trans nacional e internacional pois com ela pretendemos definir nossa visão da alteridade com as pessoas cis. Ao refutar o termo cisgênero, estamos mantendo o desbalanço essencial no qual, usando um jargão da Bia, a pessoa trans é sempre transparente à pessoa cis e a cis é sempre opaca à trans. Em outras palavras, quer dizer que as pessoas cisgêneras veem a “realidade” e nós não. (Em outras-outras palavras, quer dizer que só a “realidade” cis conta.)

E é por isso, para que nossa existência cognitiva seja considerada racional e nosso emocional seja considerado autêntico, que é importante aceitar o termo “cisgênero”. É um termo cunhado por pessoas trans que, ao definir o que é fundamental em nossa alteridade com quem não é trans, nos torna portadores de uma experiência identitária própria. Enquanto as pessoas cis puderem nos impor qual é a diferença relevante entre nós não há um diálogo verdadeiro nem seremos indivíduos bio-psico-sócio-politicamente autônomos. Em outras palavras, lutar pela palavra cisgênero é para mim lutar pelo reconhecimento da cidadania e humanidade das pessoas trans. É em nome disso que eu discuto.

E também em nome disso que me irritei com a Bárbara. Não uma irritação qualquer, mas permiti-me mostrar a irritação quando a cordialidade só ajudava a manter o tom apolítico da questão. Pessoalmente foi libertador permitir-me mostrar irritação, pois é legítima, foi provocada diversas vezes e eu a contive. A cordialidade serviria ao privado, mas cansei da indulgência necessária à ordem “terapêutica” daquele grupo.

Estes questionamentos da Bárbara não têm nada de terapêutico, se ela mesma admite que o termo biológico vem de resolução dos cientistas psi, ela está aderindo ao discurso da sua categoria, que é político (não é uma constatação ou observação, mas uma decisão ou resolução) e é uma posição sobre as pessoas transgêneras que eu quero desconstruir. Eu discordo desse uso de autoridade “científica”. Não foi contestada a seriedade ou a competência da profissional, mas questionamos a própria resolução dos especialistas cisgêneros que determinaram este jargão.

Nada foi pessoal, tudo foi político.

Algumas pessoas nos entenderam, outras não, mas o trabalho de politização daquela questão estava feito. Então chego novamente ao ponto em que voltei para casa satisfeita com o resultado e resignada das consequências. E aqui termino a necessária contextualização. Vamos ao desdobramento:

Ao longo da semana até agora, várias pessoas discutiram em torno desta questão e vi que em apenas dois dias o tom emocional e pessoal tinha tomado conta do debate. Agora a prioridade tornou-se abafar o caso para que voltemos à modorrenta paz apolítica na qual estávamos e todos pudessem voltar aos seus “importantes” afazeres tranquilos, sem importar-se com estas questões “secundárias”.

Isso sim, faz não valer a pena ser chamada de ingrata e outras do mesmo calibre pelas redes sociais, que me faz imaginar o que não estão dizendo de mim em privado. Quero politização, reflexão, quero opiniões com consequências para as pessoas cis e não ver mais as pessoas trans engolindo a seco suas frustrações por conta de relações de micropoder.

Eu vivo todos os dias as vulnerabilidades do meu corpo sócio-político. Carrego-as na minha carteira, em meus documentos. Levo-as em meu próprio corpo. A palavra “cisgênero” é importante para melhorar o entendimento entre pessoas cis e trans. E mais importante que a comunidade trans estar certa ou errada é justamente termos o direito a uma definição nossa, que é também o direito científico de errar. Se quem pode propor hipóteses sobre pessoas trans são só os profissionais psi (e, vejam só, eles se reservam o direito de enganar-se em suas hipóteses), então há sim uma assimetria muito opressora aqui.

Quero reafirmar que aceitar o uso do termo “cisgênero” sem exigir sempre “provas” de que ele é necessário e correto é reconhecer que pessoas trans portam uma experiência humana válida, que não precisa de tutela das pessoas cisgêneras. Por sua vez, aceitar o próprio termo “cisgênero” é reconhecer que nossa alteridade está em nossos corpos sócio-políticos e que o biológico algo dos procedimentos médicos apenas, não servindo para nos distinguir culturalmente, socialmente ou politicamente.

Aqui acabam as minhas opiniões, peço encarecidamente que o leitor preste bastante atenção para não confundir meus pensamentos com os dela por estarem no mesmo texto. A Bárbara não considera que as implicações do termo “biológico” sejam tão graves como eu coloquei. Além disso, não acho certo detalhar a posição dela nemsuas intenções e sentimentos a respeito. Eu realmente desconheço estas coisas.

Que cada um julgue o caso e as partes como quiser. A Bárbara é boa pessoa e inteligente. Não entendo sua insistência na posição biologizante. Da minha parte, o que vejo é o cistema agindo mais a velha mania do brasileiro de confundir público e privado, o político e o pessoal.

Estes são meus motivos, só não quero que tudo volte a ser como antes. No final, eu quero mesmo este conflito, mas só por que ele faz-se necessário para abrir um diálogo que foi inviabilizado e trivializado na premissa da cordialidade. Para mim nunca soou cordial impor a biologia à vida psicosocial de pessoas transgêneras.

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2 comentários

  • Laerte 3 de julho de 2014 em 11:47 - Responder

    Lindo texto, Leila – de comover, tanta lucidez e respeito pela opinião contrária. Tem rolado na rede um debate muito mais sumário e selvagem, sobre a “pureza” da identidade travesti/transexual, em relação às outras partes do guarda-chuva transgênero…

    • Leila Dumaresq
      Leila Dumaresq 3 de julho de 2014 em 13:24 - Responder

      Obrigada Laerte. Parece que as pessoas não sabem relacionar-se horizontalmente. Sempre é necessária uma assimetria essencial nas relações. É a ideologia da escassez agindo até em ambientes progressistas. As pessoas têm a impressão que não é possível todas as identidades serem legítimas ao mesmo tempo. Isto não é um fato, mas um cacoete ideológico perigoso. Pois implica que os direitos humanos universais seriam inviáveis. Precisamos combater isso e viabilizar discursos de união, livres dessa lógica da escassez, na qual precisamos negar absolutamente um outro para nos afirmar.

      Fico feliz que você encontrou esse viés no meu texto. Não foi um texto prazeroso de escrever, mas foi necessário para mim. Se meus conflitos locais podem ajudar na práxis do movimento nacional eu fico mais grata por “causar” aqui no meu canto.

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