Dedico este texto a todas as crianças que foram e são privadas do direito de expressarem-se.
Contardo Caligaris misturou alhos com bugalhos em seu texto intitulado “Para (ou contra) o Dia das Crianças” que foi publicado no site da folha no dia 10/10/2013. Este texto chamou-se a atenção pelo contexto e porque achei interessante a diferença entre a opinião expressa pelo autor e o efeito do texto. Compreendo o problema, pois é difícil mesmo escrever de um modo justo com uma minoria quando o foco do texto não é a mesma.
Independente dos bons sentimentos do autor sobre as crianças e seus pais, ele não está informado das possibilidades para uma pessoa transgênera hoje. Possibilidades para além do discurso cisnormativo de “condição problemática”.
Não vou imputar ao Contardo Caligaris aversão à condição transgênera, já que ele mesmo afirmou apreço pelas pessoas retratou. Todavia, daqui para frente, vou focar-me nas leituras transfóbicas e opressoras do texto. Não se trata de julgar o Caligaris, mas de neutralizar a munição que ele com certeza forneceu a transfóbicos na internet lusófona afora.
Idealização da infância é uma coisa; reconhecimento e construção do próprio gênero desde a infância é outra. O gênero na infância é fluido e pode, em alguns casos, continuar fluido a vida inteira. Eu me preocupo com as duas questões, mas reconhecer uma questão de gênero infantil não é o mesmo que idealizar a vontade da criança. Numa sociedade preconceituosa é complicado equiparar as duas coisas.
O autor preocupa-se com o impacto “da vontade dessas crianças” nas próprias vidas. Como qualquer outra criança, se elas forem bem orientadas poderão tomar decisões acertadas sobre o próprio gênero e corpo. Sempre decisões muito corajosas, mas sem dúvida, poderão ser acertadas. E questiono:
É muito diferente com crianças cisgêneras? Quantos meninos e meninas cis não estão aflitos com seus corpos das mais diversas formas? Por que algumas aflições de puberdade, que desembocam em cirurgias na adolescência, são valoradas de modos tão diferentes? Por que o risco de arrependimento das pessoas cisgêneras é diferente do mesmo sentimento nas transgêneras?
E por que nem é levado em conta o horror que é uma puberdade “normal” na vida de uma pessoa transgênera? Pergunte para qualquer pessoa transexual como foi ver seu corpo seguir o “curso natural” na puberdade e as marcas que isso deixou em sua vida. Eu sou uma delas: Digo que é horrendo.
Rejeição do próprio corpo existe entre pessoas transgêneras, mas de modo algum é condição sine qua non. Hormonização, reconhecimento civil e cirurgias fazem muito bem à pessoa transgênera. Quando são necessários, melhoram a autoimagem, a expressão, a capacidade de amar-se. É importante ressaltar os benefícios, pois é o que as pessoas transgêneras precisam e quando isso lhes é negado e postergado elas sofrem muito..
Também existe, e não é um problema secundário, a rejeição social sobre os corpos transgêneros. De tal modo que a idealização que eu mais temo é a dos gêneros cis. Não há tratamentos disponíveis contra a pressão de viver num mundo que não aceita transgêneros.
Este mundo nos dá só uma alternativa de trégua: Escondermos nossa condição a todo custo. E é uma paz bastante precária, pois se é “descoberta” a culpa de tudo o que sofrer é sempre da pessoa trans. E a vergonha de viver escondendo um passado no qual não se cometeu crime algum além de ser diferente.
Para qualquer outra pessoa que não queira viver como se tivesse vergonha da sua condição sempre haverá preconceito, questionamentos, medo de violência. Esta é a consequência idealização da cisgeneridade como norma.
Ser transgênero não é “querer ser cisgênero”. Ser mulher ou homem, não tem nada a ver com ser cisgênero ou transgênero. Além disso, há todas as formas e interpretações possíveis para cada condição. E a consciência destas possibilidades é o que nos salva a todos, pois quem consegue ser absolutamente normal?
Hoje, ainda bem, conseguimos desvincular as mudanças que muitas pessoas transgêneras buscam de uma luta por “normalidade”. E é crucial que essas crianças entendam isso em tempo. Que se aceitem e se amem como são. Que sejam elas mesmas e não idealizem nunca a cisgeneridade. Desejo muito boa sorte para elas, porque elas vão precisar. E que bom que encontraram apoio para começar isso bem cedo.
Do modo como foi colocado no texto, pareceu que a expressão transgênera na infância é “problemática”, “arriscada” e “idealizada”. Mas não preocupa também tantos pais impondo a seus filhos e filhas um ideal de homem e mulher que só existe na cabeça deles?
Não é problemático que pais que deixam seus filhos e filhas manifestarem sua transgeneridade na infância erem questionados da decisão enquanto meninos e meninas cisgêneros continuam sendo estimulados a identificarem-se e expressarem-se em seus gêneros?
E vai me dizer que não há problemas e perigos em todas as identificações e expressões de gênero? Quem nega que modelos rígidos de masculino e feminino não causam os mais diversos tipos de transtornos às pessoas?
Só a preocupação com os riscos da expressão transgênera na infância talvez não atiçasse tanto os preconceituosos, mas eles adoram quando não há um contraponto que problematize a condição cisgênera; Sem considerar todas as imposições e expectativas de gênero impostas às infâncias.
E o resultado final é que se mostra como problemática apenas a condição oprimida.
Enfim, espero que este texto contribua mostrando que devemos zelar pela igualdade. Também aprendi uma lição: que é preciso sempre romper com o espanto e o excepcionalismo antes de escrever sobre qualquer um. São sinais claros que não conseguimos nos aproximar o suficiente de quem estamos falando.
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