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Crônica de uma palavra feia: ‘Cisgênero’

1 de setembro de 2013 0 comments Article Textos Leila Dumaresq

Chamamos cisgênera a pessoa que não é transgênera. E que se passa com uma pessoa que é cisgênera?

Imagine quem nasceu identificando seu corpo como seu, teve sua corporeidade reconhecida e legitimada pelas pessoas ao redor. Imagine quem sempre gostou e sentiu-se confortável com a história do seu corpo. Identificou-se com outros corpos em fases diferentes da história biológica e aguardou seu momento de vivê-las. E quando chega a puberdade e suas dificuldades, com ela também chegam os prazeres de descobrir um universo novo de sensações e potencialidades.

Não que cada pessoa cisgênera consiga sempre desfrutar dessa tranquilidade. Todo ser humano está exporto a doenças, neuroses, psicoses, violências (preconceitos diversos e cumulativos) e toda sorte de infortúnio que possa atrapalhar seu bem estar. Ser cisgênero atrapalha tanto a vida de uma pessoa quanto ela ser destra. A condição cisgênera não invalida outra opressão que a pessoa sofra; Não é este o intuito do termo.

Por sua vez as pessoas transgêneras têm dificuldades com sua corporeidade desde cedo.: A infância é a negação de tudo o que a criança sente espontaneamente. Os adultos ao redor não aceitam ou recriminam a identificação de gênero. Na puberdade chega o inferno de sensações e socializações indesejadas. É um período de loucura tentando desesperadamente resolver uma situação que não se suporta. E ainda há o preconceito e a discriminação, que só pioram.

Nascem pessoas transgêneras em todos os lugares e famílias. Por isso elas podem sofrer qualquer outra opressão e várias têm privilégios sociais. Mas ainda assim ela terá as dificuldades inerentes à condição e sofrerá preconceito por ser transgênera.

Achei por bem descrever uma história compatível com minha experiência transexual para enfatizar o contraste com a cisgeneridade. Contudo, para não desinformar, preciso também dizer que há diversas outras corporeidades e histórias transgêneras legítimas. Afirmo que as pessoas têm o direito de identificarem-se em suas narrativas.

O importante é primeiro respeitar cada pessoa em sua autoafirmação, pois só assim é possível deixá-la em paz com suas conquistas e ajudá-la com o que a está incomodando. De ajuda errada, as pessoas transgêneras estão fartas.

Agora, depois desta brevíssima introdução à palavra e seu contexto, me responda se é possível acreditar em tantos reclamando que são cisgêneros? Já que a condição designada não lhes traz complicação por si só, complicam-se no nome.

De cara querem ser chamados de “normais”, veja só. Quando insistem que transgêneros não são normais geralmente preciso dar de ombros e ir embora. Não há mais que conversar. Porém, muitos entendem quando explico que pessoas transgêneras também são normais.

Então mudam e querem ser chamados de “biológicos”. Não imagino por que alguém gostaria de ser designado por um termo geralmente encontrado em embalagens de shampoos e condicionadores, mas eu já não estou entendendo muita coisa neste ponto da conversa.

Além de ser engraçado, “biológico” parece um pouco melhor. Mas com o tempo, os estranhamentos e restrições a respeito da biologia transgênera, vejo que o termo é só um jeito particularmente esquisito de falar que “todos são iguais, só que uns são mais iguais que os outros”.

E então eu digo que assim não pode! Que vou começar a chamá-los homens ou mulheres  “livres de gorduras trans” só para zoar. E finalmente perguntam que palavra usar. A resposta é até natural:

“Já que vocês impuseram a palavra ‘transgênero’ para as pessoas que não são como vocês e ‘cis-‘ é o prefixo oposto a ‘trans-‘, nada mais justo que aceitarem cisgênero para designá-los.”

Até tentam argumentar que eu estou impondo uma nomenclatura, mas nada podem fazer contra o fato que eles mesmos criaram e impuseram as palavras ‘transgênero’ e ‘transexual’ à pessoas que não encaixam-se numa certa regularidade de gênero. (Não se espante que eu estou em uma argumentação racional produtiva. Lembrem-se que eu deixei as pessoas que não raciocinavam vários parágrafos atrás. Nem sempre conseguimos isso, é verdade.)

E então, que fazem quando percebem que estão colhendo o que plantaram nessa pressa de dar nomes à toda diferença? O que todos fazem desde de criança: Birra. Apelam para minhas emoções.

“Mas ‘cisgênero’ é uma palavra tão feia!”, dizem. E eu balanço a cabeça negativamente. Não tem jeito pessoal. Para quem nunca reclamou de ser ‘eucarionte’, que é uma palavra horrorosa, um termo técnico feinho a mais não vai fazer diferença. Infelizmente, este é o único consolo que eu tenho para dar. A condição transgênera ainda é, de longe, um problema muito maior que ser designado como ‘cisgênero’.

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