Imagino que a maior parte das pessoas conhece o caso de vazamento de informações confidenciais do pentágono para a Wikileaks. Se não conhece, procure algumas notícias. Esta semana houve uma reviravolta no caso.
Revelar-se mulher para o mundo (quando o mundo não lhe marcou como uma) é uma das experiências mais dramáticas que uma pessoa pode experimentar. Revelar-se mulher quando o mundo inteiro acompanha sua condenação por traição do seu país num tribunal militar é extremo.
A Chelsea deve estar com suas emoções no limite. Posso imaginar o terror dela ao ouvir por anos o nome de registro nesse calvário de formalidades oficiais. Imagino agora o quanto lhe foi esfregada na cara sua identidade civil equivocada: A que lhe deram ao nascer.
Entendo porque ela ignorou qualquer bom senso, instinto de autopreservação e conselhos de advogados para gritar que é mulher e seu nome é Chelsea. Eu também ignorei o medo real de coisas ruins acontecerem. Eu também não fiz isso no melhor momento. Quase ninguém faz. Supondo que existe um momento bom para fazer isso. Só supondo, porque eu nunca vi. Mas o momento da Chelsea é realmente aterrador e faz o meu mau momento parecer um passeio de carrossel.
Através da promotoria do julgamento, o seu governo já deixou clara a intenção de torná-la um exemplo para outras pessoas que queiram vazar informações. Isso quer dizer desumanizá-la de algum modo que a maioria da população cisgênera entenda o recado. E qual a relevância da mensagem ser para a população cisgênera?
Oras! Basta somar a cultura punitiva à invisibilidade das identidades trans, mais a necessidade de um recado para a sociedade e se vê em que situação esta mulher está.
A cultura estadounidense partilha com a nossa a noção que condenados pela justiça são subumanos e subcidadãos. Sabemos que parte considerável da população, tanto lá quanto aqui, consente com um certo nível de tratamento desumano (que passa pelo desejo que a pessoa sofra privações ou dores até o desejo de execução).
Não bastasse toda a tortura que eu já vejo a Chelsea passar. Há o preconceito contra transgêneros, que acha um “luxo” e um “privilégio” ela receber hormônios e ser tratada como uma prisioneira. Provavelmente ela sofrerá estas privações que pouca gente vê como desumanizantes, MAS SÃO em qualquer situação.
Sendo assim, sabemos que uma tortura já está está em curso diante dos nossos olhos. De repente eu vi, de uma vez, pelos olhos dessa mulher negada, tudo o que ela já sofreu e sofre. Some-se agora o “tratamento exemplar” que, seja lá o que isto signifique, também está garantido. Neste ponto me obrigo a não dar mais asas à imaginação (seria inventar), mas só o que sei sobre a cultura prisional punitiva e do sofrimento trans já faz meus ossos gelarem. E tudo será aplaudido por um monte de gente dita “de bem”.
Fiquei realmente consternada com esta notícia e custei a assimilá-la. No fundo eu estava entendendo o tamanho da tragédia humana que se desenhava. Até que me gritou à consciência o reconhecimento de um ser humano como eu, que precisa de amparo neste momento. De uma ajuda necessária para enfrentar com dignidade as agruras que a vida lhe reservou.
Acredito que ela entende tudo o que fez e está lidando, como qualquer pessoa tentaria, com as consequências de seus atos. Mas quem está preparada para ter sua identidade sumariamente negada por 35 anos? Eu sei o quanto sofrem mulheres como nós em liberdade, por conta das privações que já sofremos sem cometer crime algum. Ela deveria, pelo menos, ser punida como mulher.
Enfim, Se toda a geografia e meus recursos tornam impossível um gesto meu para ela, reconheço-a como humana e escrevo estas palavras. A Chelsea assumiu riscos imensos pelo que acreditava e pagou um preço. Agora, ela será martirizada em sua feminilidade. São casos como estes que me ensinam a rezar.
E aqui eu termino o relato do começo de horror que senti esta semana. Sim, foi só o começo, porque o caso da Chelsea fez-me rememorar tudo o que sei sobre os presídios brasileiros e a população transgênera encarcerada. Não vou conduzir o leitor por este passeio no inferno. Já trouxe-o até a entrada através do caso da Chelsea. Achei que a visibilidade imediata deste caso ajudaria a visibilizar o horror vivido por seres humanos aqui em nossos presídios e em tantos outros ao redor do mundo. Por favor, em nome da nossa própria humanidade, vejam o inferno e conscientizem-se.
Vamos construir um direito mais humano.
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