Fui criada com bichos. Já fui mordida por gansos e preás, brinquei com cães e alimentei galinhas. O que falarei sobre as galinhas vale também para as pombas e outros bípedes com os quais todos convivem.
Se você jogar um pedaço de pão para um bando de galinhas elas correrão todas até a comida. A primeira que arrancar um naco do pão para si sairá correndo. Imediatamente as outras esquecem-se que há um pão inteiro ali e perseguem aquela que disparou, lutando para pegar o que está na boca daquela.
Mas nós, humanos, somos muito diferentes! Será? Enfrentamos tantos problemas parecidos com os das aves! Não chocamo-nos com as aves, mas com cenas nas quais chegam mantimentos a um campo de refugiados aflitos. O ser humano faminto torna-se bem mais parecido com outros animais. Não porque as pessoas sejam más, elas foram desumanizadas.
Eu não sou misantropa e muito menos determinista. Vejo na humanidade também a capacidade para atos extremos de altruísmo e compaixão. Temos criatividade e crítica nas situações mais adversas.
Somos capazes de amar o próximo e o distante assim como ao igual e ao diferente. Também podemos aprender e decidir agir diferente para mudar uma situação. Contudo, para que o melhor de nós manifeste-se temos que dialogar com tudo o que somos. E também somos corpos que quando sofrem e sentem dor querem lutar de algum modo.
A humanidade deve ser cultivada nas pessoas, e na privação este cultivo é prejudicado.
Outra característica bem humana é não termos apenas fome e dor. Em sociedade somos capazes causar e sofrer privações enormes. Vivemos lutando contra muitas:
Há a privação provocada pela negação de direitos. É incrível que ela exista, pois um direito é algo que podemos distribuir gratuitamente; Como a compaixão, o amor e o respeito. Também não estou falando em ter direito a tudo, mas a ter os direitos que são em princípio concedidos a todos. Os exemplos são bem claros: A negação a casais homoafetivos do casamento civil e dos direitos oriundos; Também a negação a pessoas trans de um registro civil que reconheça sua identidade de gênero.
Outra privação ainda mais cruel (por ser hipócrita e difundida) é a provocada pelo estrangulamento das oportunidades. Por exemplo: Confunde-se a manifestação da identidade de gênero de uma pessoa com a inadequação às convenções de vestuário. E assim justifica-se uma série de negações: Desde o direito de ir e vir, até o acesso ao mercado de trabalho e espaços públicos.
Esta é a vida de uma pessoa trans: procura serviços públicos e sofre humilhação ao apresentar os documentos; Recebe um convite para sair com os amigos num fim de semana e pergunta-se “o que será que o estabelecimento pensa de pessoas como eu?”; Ou vê a mãe chorar pelos comentários dos vizinhos. Por mais coragem e força que tenha uma pessoa trans, estas lutas cotidianas corroem os afetos. E não há escapatória de muitas delas.
Privadas de direitos e lidando com agressões cotidianas, várias pessoas trans exasperam-se, isolam-se e procuram sumir no mundo. Fogem do problema porque ele é, de fato, insuportável. Sumir ou isolar-se é muito melhor que sucumbir à loucura ou à depressão.
Lutar, gritar e fazer barulho, cercar-se apenas de pessoas com coragem para aguentar o tranco também é solução. Contudo, uma vida inteira só de lutas também não é uma vida plena. Mesmo que lutas e as conquistas façam parte da vida boa.
É neste ponto, nesta situação de privação extrema que encontra-se a comunidade trans do Brasil. Foi natural que os movimentos sociais surgissem com a fagulha da revolta. Sempre precisaremos de gente aguerrida, mas é também necessário reconhecer quão carentes e frágeis somos. Não porque nos falta coragem ou resistência. Pelo contrário, é que os problemas a enfrentar são imensamente dolorosos.
O primeiro rastilho de pólvora já queimou-se e hoje a comunidade trans brasileira procura um novo caminho. Já ficou claro que apenas o ímpeto pessoal de algumas pessoas não resolverá todos os problemas. É necessário unir todos, mas como juntar quem está fugindo ou lutando tão desesperadamente?
Quando ouvimos falar dos movimentos sociais, pensamos sempre em luta por direitos. Agora é fácil entender porque todos estão se evitando: O que as pessoas trans estão vendo umas nas outras? Mais luta, dor e exposição. Todos já tem o suficiente disso.
E o que deveríamos ver? Minha proposta é: Um porto seguro. Seja para quem cansou de lutar ou para quem cansou de fugir e esconder-se é preciso criar espaços de convívio e troca de afetos. Lugares para encontrar ombros nos quais chorar; Abrigo das ofensas; Defesa contra as agressões cotidianas e também para relaxar entre amigos.
Alguns me dirão que isso já acontece. Eu tenho certeza que sim: Conheço pessoalmente movimentos sociais extremamente unidos, cujos membros sentem-se uma família. Porém, os grupos e os indivíduos não se abrem uns para os outros. Por que?
Tanta privação desumanizou as pessoas trans. Isto nos foi imposto pelos opressores cisnormativos! É a situação na qual eles nos querem! Cabe só a nós virar esta mesa a partir da nossa condição atual.
Entendo que por muito tempo pessoas trans ainda chegarão desesperadas para lutar ou fugir. Precisamos reforçar os gestos de proteção mútua e união. Espalhar a mensagem que humanizar as pessoas é fundamental.
As formas de se lutar por direitos e cobrar respeito são as mais diversas possíveis, carregam as marcas pessoais de cada indivíduo. Porém, a dor da exclusão é a mesma, pois a opressão está por aí e atinge cada trans.
Se o desespero nos divide a compaixão pode nos unir. Então, finalmente teremos uma comunidade digna deste nome. E não estaremos unidos apenas pela exclusão, mas também por amor.
Foi muita sorte minha encontrar gente que me desse apoio e humanidade. Se eu soubesse como ampliar o alcance do amor que recebi eu chamaria de ‘solução’. Mas não sei. Então, estou fazendo uma proposta, talvez seja orgulho da minha parte. Deveria chamar de apelo. É um convite para quem interessar:
Vamos tentar. Não vai dar certo de uma hora para outra nem na primeira tentativa. Tudo o que escrevi aqui é só a melhor explicação que tenho do problema e minhas tentativas de solução.
Ah sim! Há uma única certeza: Sozinha eu não conseguirei nada.
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